28 novembro 2005

It makes me wonder...

Depois de ler umas vísceras de fora, percebi uma nova faceta do individualismo humano. Tão singela é que chega a se misturar com a prepotência. Engraçado como dedicamos boa parte de nosso tempo tentando “ler” as razões dos outros, apoiados por nosso grande e maldito ego. Parece-me uma tríade do mal: olhos, boca e “achismo”. Ao lidar com alguém, começamos pelo que vemos, depois pelo que ouvimos e, finalmente, pelo que achamos. Não nos contentamos em apenas tratar as pessoas como eles se mostram. Temos que usar nosso faro de cachorro burro para procurar chifre em cabeça de cavalo. E esta expressão parece vir bem a calhar para o caso.
Os ignorantes têm uma faculdade incrível de apenas tratar o seu próximo da maneira como ele se mostra. Não ficam inferindo quem eles realmente poderiam ser, ou se existe um rosto qualquer por detrás de uma possível máscara. Apenas tratam o bondoso como bondoso, o amargo como amargo, o doce como doce, e respeitam os nuances de cada personalidade, simplesmente porque enquanto há vida, há mudanças. Assim os ignorantes parecem ter a almejada felicidade, justamente por não se ocuparem como investigadores dos pensamentos alheios. Apenas dão às pessoas o que elas parecem merecer. E o mais importante é que esta atitude garante não haver erros em julgamentos de caráter, já que se baseia nos fatos como eles foram mostrados. O subjetivo não tem espaço. E não deveria ter mesmo, pois quem é você para tentar descobrir ou entender o que se passa na roda viva de fogo e tempestade que é o bater de um coração humano?
O único verdadeiramente prejudicado com o uso de máscaras é quem as usa, já que este perde sua personalidade, transformando-se em um alguém que flutua sobre a vida. Diferente é daquele que procura sempre fazer o certo, mas escolhe sua própria forma de fazê-lo. Pode até parecer não condizer com os princípios de quem luta, mas o importante é que a bandeira permaneça tremulante, mesmo se não puderem vê-la. E pobres daqueles que desacreditam na verdade por ela simplesmente não poder ser mais vista. Estes padecerão em seus próprios mundos inventados e “achados”, longe das coisas que realmente são.
Se você não sabe, não tente achar. É melhor assim. Cada pessoa tem sua singularidade, sua forma de pensar e agir. E nada disso é imutável. A vida é justamente uma experimentação de cores, de misturas, para fazer do preto e branco das coisas um colorido mais feliz. O que muitos não entendem é que este quadro que se pinta com os sentimentos é próprio de cada um e representativo de um ser singular.

19 novembro 2005

Malamar

Diante da minha falta de inspiração, recorro-me ao poeta. E não há motivo para não admitir a maior e mais latente faculdade humana. Afinal, amamos sem saber o quê nem por quê. Somente sabemos que dependemos da nossa condição, seja ela qual for. Amamos o que está aos nossos pés e o inalcançável. Acho que na verdade amamos é viver emoções.


Amar

Que pode uma criatura senão entre criaturas, amar?
Amar e esquecer?
Amar e malamar
Amar, desamar e amar
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal,
se não rodar também, e amar?
Amar o que o mar trás a praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amor inóspito, o áspero
Um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte,
e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este é o nosso destino:
amor sem conta, distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor
Amar a nossa mesma falta de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito e a sede infinita.


Carlos Drummond de Andrade

06 novembro 2005

Drão

Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura
Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se, infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminha dura
Cama de tatame
Pela vida afora
Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há
De haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão!
Morrenasce, trigo
Vivemorre, pão
Drão
Gilberto Gil, 1982